domingo, 17 de julho de 2016

O Burro - Patativa do Assaré

O Burro
Patativa do Assaré  

Vai ele a trote, pelo chão da serra,
Com a vista espantada e penetrante,
E ninguém nota em seu marchar volante,
A estupidez que este animal encerra.

Muitas vezes, manhoso, ele se emperra,
Sem dar uma passada para diante,
Outras vezes, pinota, revoltante,
E sacode o seu dono sobre a terra.

Mas contudo! Este bruto sem noção,
Que é capaz de fazer uma traição,
A quem quer que lhe venha na defesa,

É mais manso e tem mais inteligência
Do que o sábio que trata de ciência
E não crê no Senhor da Natureza.

sábado, 16 de julho de 2016

Alvorada Eterna - J. G. de Araújo Jorge

Alvorada Eterna
J. G. de Araújo Jorge

Quando formos os dois já bem velhinhos,
já bem cansados, trôpegos, vencidos,
um ao outro apoiados, nos caminhos,
depois de tantos sonhos percorridos...

Quando formos os dois já bem velhinhos
a lembrar tempos idos e vividos,
sem mais nada colher, nem mesmo espinhos
nos gestos desfolhados e pendidos...

Quando formos só os dois, já bem velhinhos,
lá onde findam todos os caminhos
e onde a saudade, o chão, de folhas junca...

Olha amor, os meus olhos, bem no fundo,
e hás de ver que este amor em que me inundo
é uma alvorada que não morre nunca!

sexta-feira, 15 de julho de 2016

São Francisco e o Rouxinol - Martins Fontes

São Francisco e o Rouxinol
Martins Fontes

Um rouxinol cantava. Alegremente,
quis São Francisco, no frutal sombrio,
acompanhar o pássaro contente,
e começa a cantar, ao desafio.

E cantavam os dois, junto à corrente
do Arno sonoro, do lendário rio.
Mas Sào Francisco, exausto, finalmente,
parou, tendo cantado horas a fio.

E o rouxinol lá prosseguiu cantando,
redobrando as constantes cantilenas,
os trilados festivos redobrando.

E o santo assim reflete, satisfeito,
que feito foi para escutar, apenas,
e o rouxinol para cantar foi feito.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Páscoa - José Antonio Jacob - Tuka

Páscoa
José Antonio Jacob – Tuka
Juiz de Fora-MG

Eu sinto pena dessa criança crente
Que espia lojas pela tarde fria,
E tem uma esperança sorridente
Defronte o vidro da confeitaria.

Esse garoto bom de olhar carente,
Que não tem casa, mas tem fantasia,
Quer ter o Ovo de Páscoa de presente
Debaixo da marquise, no outro dia.

Um sino tange longe sem razão,
 Jesus morreu na igreja da pracinha,
Pobre Jesus que enfeita a procissão...

Vem alegria: o Cristo não morreu!
Ele ainda é o mesmo que na dor caminha
E esse menino crente ainda sou eu!

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Velho Tema II - Vicente de Carvalho

Velho Tema II
Vicente de Carvalho

Eu cantarei de amor tão fortemente
Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.

Quero que meu amor se te apresente
- Não andrajoso e mendigando agrados,
Mas tal como é: risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente.

Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece: eu te amo, e o meu desejo
Apenas cobra um bem que se me deve.

Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve
À galharda conquista do teu beijo.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Barcos de Papel - Guilherme de Almeida

Barcos de Papel
Guilherme de Almeida

Quando a chuva cessava e um vento fino
Franzia a tarde tímida e lavada,
Eu saía a brincar, pela calçada,
Nos meus tempos felizes de menino

Fazia, de papel, toda uma armada;
E, estendendo o meu braço pequenino,
Eu soltava os barquinhos, sem destino,
Ao longo das sarjetas, na enxurrada...

Fiquei moço. E hoje sei, pensando neles,
Que não são barcos de ouro os meus ideais:
São feitos de papel, são como aqueles,

Perfeitamente, exatamente iguais...
- Que os meus barquinhos, lá se foram eles!
Foram-se embora e não voltaram mais!

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Da vez primeira em que me assassinaram - Mario Quintana

Da vez primeira em que me assassinaram
Mario Quintana 

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha…

E hoje, dos meus cadáveres, eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada…
Arde um toco de vela, amarelada…
Como o único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Ah! Desta mão, avaramente adunca,
Ninguém há de arrancar-me a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz do morto não se apaga nunca!”

domingo, 10 de julho de 2016

Soneto do Amor Total - Vinicius de Moraes

Soneto do Amor Total
Vinicius de Moraes

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

sábado, 9 de julho de 2016

Soneto da Separação - Vinícius de Morais

Soneto da Separação
Vinícius de Morais

De repente, do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma,
E das bocas unidas fez-se a espuma,
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente, da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama,
E da paixão fez-se o pressentimento,
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente,
Fez-se de triste o que se fez amante,
E de sozinho o que se fez contente,

Fez-se do amigo próximo o distante,
Fez-se da vida uma aventura errante,
De repente, não mais que de repente.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Elegia n. 10 - Mauro Motta

Elegia n. 10
Mauro Motta

Insone e inquieta na pequena cama,
Na longa noite, Luciana chora,
E à mamãe tão distante chama, chama,
Como se ela pudesse ouvi-la agora.

Não quer o pai, não quer também sua ama;
Só a mãe que a deixou e foi embora.
No seu choro infantil, pede e reclama
A canção de dormir que ouvia outrora.

Mas, aos poucos, na noite, vejo-a calma,
Para alguém os seus braços se levantam,
Junto do berço, maternal, tua alma

Canta a canção de doces estribilhos
Que as mães, mesmo depois de mortas, cantam
Para embalar os pequeninos filhos.